Um mundo para meu filho

Já não quero nada, pelo menos no sentido de desejar algo que me ultrapasse, que me expanda, que me transporte para além de mim mesmo. Foi-se o tempo das ilusões, da pendular relação entre euforia e tristeza, da mágica figura de Maya acenando na direção de um futuro que jamais virá. 

A vida é muito mais simples, disseram-me as duas rolinhas pousadas no muro do quintal. Elas nada sabem do amanhã e o ontem ficou para trás como o filhote que, ao ganhar asas, partiu para sempre sem deixar expectativas ou mágoas, apenas o cheiro da liberdade.

Mas não sei se gosto do mundo que deixarei de herança para meu filho.

Não falo do mundo em si, desse lugar sagrado que nos acolheu a ambos e que nos permite vivenciar o mistério que, cada qual ao seu modo, interpreta, colore ou, simplesmente, deixa fluir. Mundo onde a vida, fruto das relações entre Brahma, Vishnu e Shiva, isto é, da criação, preservação e morte, é um sopro, mas nem por isso breve ao ponto de impedir momentos de reflexão, inclusive sobre o que deixarei de herança para meu filho querido. 

Pois é um mundo sobre o qual paira não apenas o mistério, mas também a confusão. Os circuitos criados pela inteligência humana criaram uma espécie de teia digital na qual trafega o relativismo convertido em certezas particulares, com fins lucrativos e sem nenhum apreço pelo diverso, transformado que foi em aberração. 

O fascismo dos pequenos saberes, conjugado com o despotismo dos grandes desejos, varreu a face da Terra, transformando irmão em inimigo de irmão, cada qual a defender as cercas de suas minúsculas certezas. Todos sabem, ou acham que sabem, graças ao fluxo ininterrupto de informações e desinformações, tudo misturado e sem rigoroso critério de verificação. 

O que vale é a força, os likes  ou dislikes a quem, sonhando com glória, dá tudo de si para que seu ego seja objeto de devoção. A disputa não é mais entre ideias, elas são apenas o adorno para o narcisismo que, por força da rede de influências, se tornou universal. Não importa a Razão, vale apenas a opinião de quem a impõe como verdade. A simpatia pessoal se encarregará de transformá-la em certeza para os fãs. 

Como ensinar, se o professor, ao contrário do Youtuber, não é simpático a contento? Como aprender, se o estudante reluta em abrir uma mente permeável apenas ao que agrada, ou ao que é fácil de digerir?

Não é questão de dúvida metódica, condição essencial para a reflexão e o saber. Trata-se de outra coisa, de uma indisposição generalizada para tudo o que ameace romper a armadura das certezas pessoais. Sem elas, o narcisismo se dissolveria, revelando a insignificância do “eu”.

Todos duvidam, não de si mesmos como ensina a filosofia, mas apenas dos outros, ensejando os vários sectarismos em disputa no ringue da intransigência. Todos falam e ninguém ouve, pois todos acreditam estar certos, ao contrário do outro, cuja fé, sendo diferente, converteu-se em heresia a ser combatida no fogo da inquisição.

Em nosso tempo, os inquisidores são muitos, cada qual encastelado num feudo onde, sob os aplausos dos seguidores, erige-se como ícone em um mundo privado da Razão.

Será esse o mundo que meu filho herdará?

6 comentários em “Um mundo para meu filho

    1. Pois é, Fábio. Acho que chegou a hora de zerarmos muita coisa (sem, obviamente, olvidar a história, que é uma das mestras da vida), começar de novo com novos parâmetros de humildade, sem os quais o futuro que se avizinha será de um mundo cada vez mais hostil, com pessoas cada vez mais centradas em si mesmas. Difícil não ser pessimista, mas prefiro a posição de Fernando Sabino, que dizia ser melhor o otimismo, pois enquanto o pessimista sofre duas vezes, uma por antecipação e outra quando sua previsão se verifica, o otimista sofre apenas uma vez. Forte abraço🌹

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  1. Eu não estou conseguindo lidar com esse momento, não consigo nem escrever a respeito, pois me sinto como num pesadelo em que se quer gritar e a voz não sai. É muito distópico, muito irreal – ou surreal – para entender a concretude disso. Parabéns por conseguir expor. É meio caminho para acordar do pesadelo.

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    1. Olá, amiga! A sensação é mútua, daí a necessidade de desabafar e de fazer, por vezes, do desabafo uma reflexão. Sei que pouco adianta, pois as bolhas impermeabilizam o debate para além dos que, como nós, assistimos beatializados à deriva absoluta. Um grande abraço🌹

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  2. Há algum tempo quero comentar o texto, por isso não serei breve, mas é importante. Creio que o mundo que deixamos para aqueles que amamos é sempre bom, desde que as ações estejam voltadas para oferecer no presente o que há de melhor em nós. Mesmo com as contingências da vida. Entendo a preocupação com o mundo que os outros deixarão para aqueles que amamos. Sim, pois se dependesse de mim a herança não seria o relativismo, a certeza reducionista, a idolatria ao dinheiro e tantos males mencionados nesta publicação.
    Sobre a face da Terra está sendo varrida, estou com alguns pensadores que afirmam haver um colapso sistêmico, social, financeiro, moral. Creio que só a História poderá confirmar se a ruína é verdadeira. Neste momento estou inclinado a acreditar que sim.
    Sobre os likes e os dislikes, o narcisismo e o ego devem receber os devidos tratamentos, a tecnofilia só amplia os transtornos e a vaidade.
    No que se refere ao dilema como professor, estou com Sócrates, não é possível dar à luz se a pessoa não estiver grávida. Tive algumas experiências como professor. Há aqueles que não serão tocados pela chama do conhecimento, mas o que são tocados não esquecem, são esses os que me trazem alegria.
    Outra questão, no primeiro ano da graduação, comentei sobre meu incômodo com os evangélicos neopentecostais. Esse incômodo permanece, mas há poucos anos uma percepção nova surgiu. Sempre que penso neste grupo, considero o que há de pior, ignoro a possibilidade de que exista quem realmente esteja neste meio por princípios verdadeiramente cristãos. Sendo ludibriado ou não, sendo conivente com os desmandos ou não. Assim como há corrompidos na educação, na política, na literatura, há nas religiões. Por isso não posso deixar de considerar os que não foram corrompidos, mesmo que a experiência diga o contrário, a prioridade aqui deve ser da razão. Em relação aos alunos, retomo a importância de considerar os que não foram corrompidos.
    Em um último esforço para responder a última questão. Aqueles que amamos herdam o que podemos deixar para eles e o que compreendem daquilo que deixamos. É possível que o mundo que herdamos de nossos país não tenha sido aquele que eles quiseram deixar. O sistema é aberto e outros fatores devem ser incorporados a essa variável. O mundo deixado pelos demais, que também é o mundo onde estamos inseridos (aqui há uma questão lógica a ser superada) não está absolutamente sob o controle de um indivíduo. Há falência nas construções coletivas. Meu refúgio é em uma palavra que aprendi no primeiro ano da graduação: individuação. Na esperança de que a parte do todo que controlamos possa influenciar, em algum momento, os rumos da coletividade.
    Obrigado pela publicação inspiradora, texto excelente como os demais.

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    1. Belíssima reflexão, Jorge! Grato por ter entre meus ex-alunos pessoas como vc, que respondem racionalmente à provocação, e com muita elegância. É essa postura, a civilizada, que faço votos meu filho tenha diante das inevitáveis contradições da existência. O contraditório não é o obstáculo, muito pelo contrário: o grande obstáculo é a sua supressão. Por isso sempre acreditei e ainda acredito que a educação deve estimular o diálogo, ele é a único instrumento capaz de rasgar as bolhas da intolerância. Forte abraço🌹

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